Every wall is a Statement

Site-specific installation, Clérigos, Porto, 2016

 
 

Organization: Alumia

Curator: Andreia Garcia

Site-specific installation with hand-painted copper tiles
615 x 90 x 220/280 cm

 

Every wall is a Statement

Text by Tiago Casanova

 

Every Wall is a Statement is an installation of 1850 hand-painted tiles that was shown in a small square by Torre dos Clérigos [Porto], very close to the place of the old Fernandina City Wall, built in the 14th century during the reign of D. Afonso IV and concluded during the reign of D. Fernando. In 1787, the first stretches of the wall were demolished in this part of the city, Clérigos, to clear space for the construction of new neighborhoods to house the city’s growing population.  Today we understand concepts such as “Heritage” very differently. Until the 1830s, heritage was simply seen as the “remnants of Antiquity” (Choay, 1992: 12). Only in 1931, with the Athens Charter, will Europe, as a collective, define some of the conservation principles for its built heritage.

Part of the commemorations of the 20 years of the classification of Porto’s old city as a World Heritage Site, this piece creates links between present and past, but also with the future. Acknowledging that the conservation of our heritage must be a key element in contemporary cultural policies, it also underlines the necessity for an open debate on what should be preserved and what should give place to new functionalities. As a matter of logic, we know that the city would have never had its urban expansion and the economic and social benefits it provided if the Fernandina Wall had not been demolished. This link with the present is also materialized in the questioning of the wall and the meanings it conveys in a developed and supposedly free Western world, a world that keeps promising and investing on the construction of walls — physical walls, but also economic and social walls. 

This work is a praise of the values of our built and historical heritage, but also those of the ethical and moral heritage our societies have built throughout centuries of learning.


Translated by José Roseira


The [Transgressive] Statement of a Wall…

Review of “Every Wall is a Statement”
by Ana Salgueiro

 

Em A imagem e a sua interpretação, Martine Joly recupera as considerações de Umberto Eco sobre os limites da interpretação, sublinhando quanto, para a construção de sentidos de um discurso visual, concorre a leitura quer da intentio auctoris, quer da intentio operis, quer da intentio lectoris, três intencionalidades fortemente implicadas - e por isso não dissociáveis - do “omnipotente”, embora tantas vezes “invisível”, contexto: o contexto do autor, o da obra e o do próprio leitor (JOLY, 2003: 8 e 97).  Porém, se num passado não muito longínquo, teorias, práticas e políticas culturais assentaram no equívoco da estabilidade exclusivista e da transparência unívoca dos contextos e dos seus discursos, entretanto, autores como Stephen Greenblatt demonstraram a falácia de que fenómenos e contextos culturais alguma vez tenham existido “in hermetic isolation from one another” (GREENBLATT,2010:4), apresentando-se antes como zonas de contacto (PRATT, 1991), resultantes de um “ceaseless process of exchange”, “a restless process through which texts, images, artifacts, and ideas are moved, disguised, translated, transformed, adapted, and reimagined in the ceaseless, resourceful work of culture”(GREENBLATT,2010:4). Um processo de transferência e en-contro desde sempre marcante na produção de espaços (LEFEBVRE, 1991) e na criação de fenómenos culturais e artísticos locais, ainda que na contemporaneidade tenha assumido maior visibilidade (nem sempre proporcional ao rigor crítico com que é lido), seja pela intensificação do desenvolvimento tecnológico de meios de comunicação, de transporte e de reprodução, seja pela crescente mobilidade humana, seja ainda pela hegemonia dos processos de globalização . 

Ora, pensar em mobilidade espácio-temporal ou em transposição de fronteiras contextuais implica não ignorar a lição sublinhada por Linda Hutcheon no seu estudo sobre a paródia na Arte Contemporânea: “Não há integração num novo contexto que possa evitar a alteração do sentido e talvez, até, do valor” (HUTCHEON, 1989: 19). Assim sendo, qualquer translação histórica, geocultural ou discursiva implica um complexo processo de descodificação, reinscrição e recodificação que, com maior ou menor distância crítica, adapta os sujeitos, os objetos, os fenómenos ou os valores em movência, aos novos contextos de chegada.

Estas questões constituem, na verdade, o núcleo de atenção criativa e reflexiva que, desde o irónico título, encontramos em “Every wall is a statement” de Tiago Casanova: uma fotografia com caráter documental, já anteriormente publicada no website do artista, que agora é re-apresentada em formato impresso, na secção de ensaios visuais da revista TRANSLOCAL. Trata-se de uma fotografia onde o próprio Tiago Casanova registou um enquadramento da instalação homónima site specific, também de sua autoria, que, entre dezembro de 2016 e janeiro de 2017, habitou provisoriamente a zona dos Clérigos, a convite do programa portuense de dinamização cultural ALUMIA, com que a Porto Lazer, em parceria com a autarquia local, quis assinalar os 20 anos da classificação do Centro Histórico do Porto como Património Universal da Humanidade pela UNESCO.

Dotada de uma eloquente condensação visual, em grande medida resultante da redução da instalação de 2016/2017 a uma única fotografia carregada de desconcertantes pistas de leitura, adensadas pela recontextualização  na secção de ensaios visuais da revista, “Every wall is a statement” apresenta-se, assim, como fenómeno artístico e cultural em movência e metamorfoses continuadas, cuja instabilidade advém quer de um irrequieto desdobramento multimórfico assinado por Tiago Casanova (instalação → fotografia digital → fotografia impressa), quer de uma dinâmica de deslocalização de restos ou ruínas de passados (mais ou menos longínquos; com maior ou menor materialização física; promovida pelo próprio criador, mas também por outros autores que, na WEB, disseminam imagens da instalação), os quais, oscilando entre trânsito e cristalizações efémeras, vão sendo reinscritos em diferentes locais físicos, virtuais e culturais (Porto → website de Tiago Casanova e várias redes sociais na WEB → revista internacional editada no Funchal).

 “Every wall is a statement” nasce e participa na fase inicial de execução do programa ALUMIA, em que vários criadores foram convidados a refletir sobre o património urbano do Centro Histórico do Porto e, consequentemente, sobre a própria cidade, através de intervenções artísticas no espaço público e a partir de um olhar crítico, atual(izado) e criativo. Natural do Funchal, embora também habitante e criador visual de diferentes localidades portuguesas e estrangeiras, cujos trabalhos artísticos privilegiam abordagens site-specific, ainda que muitos deles circulem também no espaço virtual da World Wide Web, Tiago Casanova integrou, assim, a lista de artistas-não-nativos convidados a repensar, a intervir criativamente e, nesse duplo sentido, a alumiar a cidade do Porto, retocando o brilho artístico do seu Centro Histórico e revelando, aí, eventuais dimensões e aspetos que uma leitura apressada da cidade nem sempre torna perceptíveis. Conhecendo a obra deste artista visual, a sua itinerância biográfica e curricular, a sua formação em arquitetura, as preocupações éticas e a atenção crítica e política que imprime no modo como, nos seus trabalhos, observa e discute a vida urbana contemporânea, não surpreende que Tiago Casanova tenha escolhido a zona dos Clérigos (uma das mais emblemáticas da Cidade Invicta e, também por isso, um dos seus ex-libris mais procurados pelos turistas), para aí intervir, especificamente, num dos lugares onde a solidez da antiga muralha medieval do Porto foi rompida, e onde, no Presente, se apagou o rasto físico quer desse muro, quer da sua fratura.

Embora tendo sido concebida in situ, a instalação “Every wall is a statement” foi integrada num projeto mais amplo de Tiago Casanova, ironicamente intitulado “Gang do Cobre”, iniciado em 2013 e ainda hoje em curso. Desdobrado em intervenções autónomas, materializadas em diversos formatos e linguagens artísticas (instalação, fotografia, escultura, performance, vídeo, desenho) e disseminadas por diversos espaços públicos, galerias de arte e ‘salas de exposição’ menos convencionais, “Gang do Cobre” tem transitado pelo país e internacionalmente, ora com enraizamentos pontuais assinados pelo seu criador em vários locais (primeiro, na zona metropolitana do Porto; mais recentemente, em Lisboa), ora através do registo visual de algumas das peças que o constituem e que leitores comuns difundem na WWW (CASANOVA, s.d.). Por conseguinte, a leitura de “Every wall is a statement” não se pode reduzir ao que foi apresentado nos Clérigos, demonstrando como um fenómeno cultural local e urbano, pelas dinâmicas translocais que marcam as culturas e a arte contemporâneas, não se esgota no aqui-agora da sua conceção e da sua exposição primevas. 

Ao inserir esta instalação no projeto “Gang do Cobre” e ao publicar uma fotografia que regista essa instalação portuense, primeiro, no seu website e, agora, numa revista internacional editada no seu Funchal nativo, Tiago Casanova acompanha a dinâmica translocal já encetada pelos leitores-difusores da sua instalação, colocando “Every wall is a statement” (assim como o local e a cidade onde a instalação foi inicialmente concebida) em relação com outros locais e cidades, estabelecendo diálogos ora com outros autores, ora com outras obras por si assinadas e nas quais, através de vários media e linguagens artísticas tem vindo a questionar as fragilidades do desenvolvimento urbanístico do país e os problemas socioeconómicos neste implicados, a degradação e a gentrificação do património local português, a rasura apressada e a exploração mercantil da memória cultural dos lugares, a relevância da arquitetura nas sociedades contemporâneas, o modo como locais e turistas se relacionam com todo esse património, ou as incoerências e lacunas detetáveis nas narrativas e representações identitárias de hoje, muitas vezes difusoras de estereótipos acríticos e falaciosos dos lugares e das suas respetivas comunidades. 

Jogando com a memória e(m) ruínas do passado do Porto, “Every wall is a statement” procura tornar visível o eco da muralha arquitetónica outrora existente naquele lugar carregado de significações simbólico-identitárias locais e nacionais: primeiro, ao materializar-se num fragmento mural (re)inscrito no chão da cidade; depois, ao metamorfosear-se, numa espécie de tradução condensada, em  fotografia que documenta esse fragmento mural e que transita entre-lugares e entre diversos media. Deste modo, “Every wall is a statement” faz  jus ao título em inglês que ostenta, apontando não exclusivamente para os muros do Centro Histórico do Porto (o de Tiago Casanova e o da apagada muralha fernandina), mas também para muitos outros muros (“Every wall”), físicos e metafóricos; portuenses ou localizados em outras geografias e temporalidades; celebrados, esquecidos ou  ignorados pelas comunidades locais, nacionais e internacionais. Muros como aqueles que, em 2016, Benjamin Netanyahu ou Donald Trump defendiam (à semelhança do Porto Medieval ou, p. ex., da Berlim da Guerra Fria) como emergências arquitetónicas indispensáveis e inquestionáveis para proteção das respetivas comunidades, e os quais, enquanto divisórias, cercas e obstáculos, carregam também consigo, inscrevendo nos seus lugares de enraizamento, o peso da segregação, da rutura, da incomunicabilidade e do isolamento, assim como a sombra da violência, da opressão e do medo. Muros implicados, portanto, em dinâmicas culturais e heranças históricas locais, nacionais e universais, com particular impacto em múltiplos lugares do Passado e do Presente, mas que o comemorativismo festivo e as narrativas turísticas por vezes rasuram, apesar de, nem por isso, aqueles deixarem de habitar e assombrar esses sistemas ecossocioculturais. No caso específico do Centro Histórico do Porto – hoje uma referência do cosmopolitismo urbano nacional, mas também um exaltado e polémico caso  de gentrificação turística contemporânea -, basta recordarmos o que significou, de facto, a construção da muralha da cidade, na Idade Média, ou o que, no contexto da Contra-Reforma portuguesa, peninsular e internacional, significou a Arte Barroca.

A estranheza estética da instalação “Every wall is a statement” sobressai na fotografia, como, em 2016/2017, terá sobressaído in situ, alumiando, de facto, aquele Centro Histórico, seja pelo registo da assinatura de um jovem artista contemporâneo, cuja obra site specific, apesar do seu enquadramento espácio-temporal e político-cultural, se vai disseminando por outros tempos e lugares, em metamorfoses sucessivas; seja pela irreverência estético-retórica evidenciada na instalação, num gesto artístico e político transgressivo, depois transferido para a fotografia. 

A volumetria inusitada daquele muro, aparentemente desprovido de utilidade e (in)oportunamente imposto na fachada de um monumento histórico-religioso, re-sacralizado pela UNESCO em 1996, surge em alinhamento com os fios do elétrico, numa trama de linhas paralelas, por sua vez cruzadas com outras linhas (terrestres e aéreas; oblíquas e perpendiculares), todas elas a escaparem quer para o fora de campo da fotografia, quer, in situ, para outras zonas consideradas menos nobres da cidade e, além destas, para outros locais do Mundo. Essa estranheza transgressiva é reforçada, na peça em contexto, pela estridência cromática do tom cobre adotado nos azulejos que revestem o muro e que, contrastando com a transparência da muralha desaparecida e com a sobriedade granítica da alvenaria da igreja, ora evocam, pela cor, o metal de transição humanamente manipulado desde a Pré-História  (o cobre), hoje altamente cobiçado pelos mercados da indústria e da tecnologia modernas, dadas as propriedades de condução elétrica que a Química nele encontrou; ora aludem ironicamente, pelo material cerâmico e pela técnica de revestimento mural utilizada, à tradição portuguesa dos azulejos, fenómeno cultural marcante na identidade urbana de muitos monumentos e de muitas localidades nacionais, mas que, afinal, é herdeira de uma bem mais antiga tradição mourisca, introduzida em Portugal no século XV por importação régia e que, posteriormente, viria a ser objeto de sucessivas atualizações miscigenadoras e até de transferências para outras geografias. A estridência cromática da peça é ainda sublinhada pela inscrição, a branco e em letras garrafais, da frase-título em inglês “Every wall is a statement”, uma afirmação lapidar que, recorrendo à língua-franca da contemporaneidade globalizada, confere à instalação um alcance cosmopolita e trans-histórico, que rompe com leituras exclusivamente localistas e imediatamente contemporâneas da instalação e da sua re(a)presentação fotográfica.

Trata-se, portanto, de um processo criativo de estranhamento hiperbólico e irónico, que em “Every wall is a statement” será adensado pela con-fusão de temporalidades históricas e marcas estéticas, evidenciada ora no jogo irónico da peça com o entorno histórico, ora na trama de linguagens artísticas que compõem o seu discurso visual. A ancestral tradição do azulejo português cruza-se, aqui, com a inscrição verbal em inglês, com a técnica fotográfica aplicada no registo da imagem (entretanto difundida através de vários media), assim como com a sobriedade retilínea e clean do design moderno. Deste modo, Tiago Casanova tece, na instalação de 2016/2017 (retecendo-o depois, no registo e na remediação fotográficos), um discurso visual híbrido que, ao ser instalado no contexto específico daquele Centro Histórico e ao assumir a estridência irreverente antes mencionada, assume uma translocalidade que se conforma inequivocamente com a atitude transgressiva, (auto)crítica e inquietante da Arte Contemporânea.

Distanciando-se, assim, de um posicionamento conservador, nostálgico e revivalista que tende a dominar as representações visuais e algumas intervenções arquitetónicas nos locais classificados pela UNESCO como Património Universal da Humanidade (representações e intervenções que, na verdade, alimentam artificialmente a fixação de um certo exotismo histórico e etnográfico fortemente apetecível e rentável para a exploração turística desses lugares), Tiago Casanova não procura restaurar ou monumentalizar, no Presente, a muralha ancestral do Porto. Resistindo a essa tendência e à voracidade superficial de certas narrativas comemorativistas e turísticas de locais patrimoniais, Tiago Casanova cria um fragmento mural efémero, aparentemente inútil e onde se evidencia a mimetização paródica da antiga cerca portuense, cuja ironia (depois transferida para a sua documentação fotográfica), na verdade, sinaliza a ubiquidade desconcertante do contemporâneo; um objeto artístico insólito, em disrupção estética com a arquitetura histórica daquela zona do Porto e que, à semelhança dos turistas (na fotografia, quase escondidos no canto inferior direito), invade o centro da cidade e as suas representações mais convencionais, parecendo vir contaminar, com a contemporaneidade estranha e irreverente do seu discurso visual, a sacralidade histórico-patrimonial, religiosa e identitária do âmago de uma das mais antigas e relevantes cidades portuguesas.

 Neste sentido, mais do que comemorar o núcleo urbano fundador do Porto e a sua classificação pela UNESCO, “Every wall is a statement” problematiza a narrativa identitária da cidade (e do seu centro, em particular), iluminando a complexidade instável e difusa, que, à semelhança de outros casos singulares dispersos pelo globo, caracteriza aquele sistema ecossociocultural local e urbano; uma densidade que, porém, é muitas vezes esquecida, consciente ou inconscientemente, em discursos e representações nostálgicos, essencialistas e superficiais. Jogando ironicamente com memória e esquecimento, local e global, familiar e estranho, Passado e Presente, apagamento e (re)inscrição crítica, original sagrado e réplica quase contrafeita, material e virtual, “Every wall is a statement”, em 2016/2017, impôs ao olhar e à experiência dos transeuntes da zona dos Clérigos (nativos e visitantes, instalados ou em trânsito) a evidência do que, hoje, através da fotografia, volta a apresentar aos seus leitores, tentando reinscrever nas suas memórias pessoais: a simplificação redutora e falaciosa desses discursos utópicos e revivalistas que, apressadamente e sem rigor histórico e autocrítico, traem a verdadeira densidade do contemporâneo, do local e do urbano, ignorando ou apagando traços e rastos menos luminosos, afinidades desconfortáveis e pontes que permanecem ou são quotidianamente (re)construídas entre a muralha antiga da cidade (ou o que dela resta ainda hoje) e outros muros-fronteiras contemporâneos, seja da própria Invicta, seja de outras localidades do globo.

Assim, ao instalar esse fragmento mural de azulejos em tom cobre, efémero, aparentemente inútil e onde se lê “Every wall is a statement”, sobre o chão onde outrora fora erguida a muralha medieval do Porto, em confronto com a fachada barroca da Igreja dos Clérigos e no contexto das comemorações dos 20 anos da classificação do Centro Histórico da cidade como Património Universal da Humanidade pela UNESCO, Tiago Casanova exibe, de facto, a transgressiva afirmação (“statement”) quer do que, para si, é e significa um muro (“wall”), quer do que pode ser um gesto artístico e político de reinscrição crítica da memória de um lugar, sem cair no comemorativismo leve e redutor. 

“Every wall is a statement” mostra como um muro é, acima de tudo, a imposição, mais ou menos violenta e artificial, de uma barreira arquitetónica que procura definir e supostamente defender a fronteira que separa o dentro do fora, o familiar do estranho, o (re)conhecido como nativo e original em oposição ao novo perturbador, o Eu do Outro. Demonstra como todo o muro é a manifestação física de outras tantas linhas divisórias - conceptuais, imaginárias, afetivas e identitárias - cuja robustez e cuja estridência manifestas na sua edificação, mesmo quando invictas, não deixam de apresentar, em algum momento da sua História ou em algum ponto da sua tessitura, porosidades, fissuras ou até fraturas. “Every wall is a statement” nota ainda como todo o muro exige, portanto, ser revisto criticamente, quer na fragilidade orgânica e fragmentária que o constitui, colocando em causa o propósito delimitador e defensivo que reside na sua génese, quer na violência que irradia para outros tempos e lugares. 

Neste sentido, “Every wall is a statement” nota como o Centro Histórico do Porto, pelas afinidades e semelhanças reveladas, assim como pelas conecções potenciadas pelos atuais processos de globalização , não deixa de se aproximar de outros núcleos urbanos fundadores de outras tantas localidades, apresentando, na contemporaneidade, uma densidade complexa, impura e paradoxal, tecida de múltiplas temporalidades, narrativas e imagens por vezes paradoxais, ora apagadas, ora reinscritas na memória cultural que nele e dele se vai reconstruindo. Ver e conhecer este e outros lugares congéneres (na verdade, lugares-tempos expandidos) implica, pois, ir para além do comemorativismo festivo e superficial, facilmente comercializável. Implica mergulhar transgressivamente nas ruínas e nas sombras da História que os habitam,  acompanhando também as muitas rotas que, ora a partir desses centros, ora em direção a eles, fluem até outros lugares-tempos, para aí se reinscreverem em outras formas híbridas e atualizadas, numa inquietante con-fusão entre o que é imediatamente local e o que é transferência estrangeira, entre o que é original, simulacro ou recriação, entre o que é verdadeiro e ficcional, entre o que é justo e válido, por um lado, e eticamente questionável, falacioso e injusto, por outro.

Se every wall, de facto, is a statement, então, uma das afirmações legíveis no muro de Tiago Casanova é a da urgência de a contemporaneidade repensar os seus muros do Passado e do Presente, compreendendo a violência que, com eles, se inscreve inutilmente não apenas nos seus locais de edificação, mas também, sob a forma de eco e sombra, quer em outros sistemas ecossocioculturais que, de facto, integram as redes translocais e trans-históricas que os definem e constituem; quer nos imaginários e subjetividades afetivas dos sujeitos que os habitam ou visitam e cuja ação no mundo é profundamente condicionada por eles. Ecos e sombras igualmente evocados nos muros claustrofóbicos referidos no poema “Envoi” de Octávio Paz, citado por Henri Lefebvre em epígrafe ao seu livro La production de l’espace: “Imprisoned by four walls/ (to the North, the crystal of non-knowledge/ a landscape to be invented/ to the South, reflective memory/ to the East, the mirror/ to the West, stone and the song of silence)/ I wrote messages, but received no reply” (apud LEFEBVRE, 1991). Em certa medida, “Every wall is a statement” responde (e exige respostas válidas) a muros e a condições humanas como estas.


  1. Num dos e-mails trocados com Tiago Casanova, durante a redação do presente texto, o autor distingue fotografia com caráter documental de fotografia documental propriamente dita (documentary photography), notando: “Em primeiro lugar eu considero que a fotografia tem quase sempre um intuito documental. Mas não nos enganemos na diferença entre o carácter documental da fotografia e a fotografia documental (Documentary Photography). Pode ser um documental individual, privado, que está no simples acto de fotografarmos para nos recordarmos de pormenores, coisas, pessoas, lugares. Ou pode ser um documental institucional, ou representante de uma memória colectiva. Se analisarmos os primórdios da fotografia, entendemos bem esse fenómeno, seja através dos retratos daguerreótipos, ou das Mission Photographic. A fotografia não era considerada Arte porque se dizia que era uma mera cópia da realidade, e não a sua interpretação. A fotografia tem essa base de ser um instrumento para nos fazer recordar, como que num processo mnemónico, tal como dizia John Berger. MAS é aí que entra a interpretação, na leitura contemporânea que fazemos à fotografia; na diferença entre uma imagem ser vista por quem a fez, e que o/a faz lembrar de todos os outros pormenores exteriores à imagem, ou ser vista por quem não viveu aquele momento e a analisa com base na sua própria experiência de vida. E dado que todos nós temos experiências de vida diferentes, podemos concluir, assim, que a fotografia é sempre uma ficção e nunca uma realidade. Portanto quando falamos em documental, naturalmente não estamos a dizer que [a fotografia documental ou com caráter documental é/diz] verdade ou real. Mas que é uma representação de uma certa realidade que de mil e uma formas pode ser arquivada, seja num arquivo pessoal, seja na web ou num qualquer outro arquivo./ Mas voltando ao início, obviamente uma fotografia com carácter documental pode ser artística, tal como qualquer Documentary Photography”

  2. ALUMIA foi um programa de apoio à dinamização cultural do Porto, gerado no âmbito das comemorações dos 20 anos da classificação do Centro Histórico da cidade como Património Universal da Humanidade pela UNESCO e promovido pela Porto Lazer, em parceria com a autarquia local, com o apoio de fundos europeus e com a participação de vários artistas, ateliers de arquitetura, laboratórios criativos e instituições culturais de reconhecido mérito; naturais do Porto, aí sediados e/ou com outras afiliações geoculturais (OLIVEIRA, 2016).

  3. O processo translocal de reprodução e disseminação de trabalhos seus na WEB, através de fotografias de múltiplas autorias que com aqueles se cruzam nos seus locais de implantação inicial , assume relevância na obra de Tiago Casanova.  Ilustrativo do que aqui referimos é a recolha de imagens da instalação “Every wall is a statement” que, desde 2016, circulam na Internet, sobretudo em redes sociais como o Instagram, levada a cabo pelo próprio Tiago Casanova, e parcialmente disponibilizado num ‘arquivo’ virtual criado para o efeito no mural do artista numa outra rede social: o Facebook (ver aqui: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1455 819857776637&set=pb.100000459112190.-2207520000.1534807234.&type=3&theater). Aliás, o próprio artista reconhece que, com a criação deste “arquivo” virtual, provisório e  não-institucionalizado, pretende insistir em questões que acabam por ser também fulcrais na sua instalação e que assumem particular relevância na equação dos processos de translocalidade: “Mas afinal será esta peça (assim como qualquer peça ou local de estética apelativa) somente uma peça daquele lugar? Tudo isto ganha uma viralidade na web que torna vários locais em locais do mundo, e cria memórias em nós de locais que nunca visitamos. Tal como diria Marianne Hirsch, o conceito de pós-memória materializa-se na imagem residual que certas fotografias provocam; fotografias que parecem pairar entre a memória de um indivíduo e a história impessoal. É possível que não tenhamos vivido esses acontecimentos na primeira pessoa, mas que uma imagem deles infunda a cultura que habitamos.” (citação de e-mail trocado com Tiago Casanova, no decurso da redação do presente texto).

  4. Ver a relevância e o significado que a muralha urbana assumiu  tanto no contexto peninsular da Reconquista Cristã, quanto no da constituição da nacionalidade em rutura com o reino de Leão e Castela e não isenta de violentos conflitos internos. Relativamente ao Barroco, não esquecer nem a sua génese ao serviço da violenta Contra-Reforma Católica, nem o paradoxo  de a Igreja dos Clérigos  ser apontada como um dos seus mais notáveis exemplares do Barroco Português, apesar de o projeto arquitetónico ser atribuído ao toscano Nicolau Nasoni.

  5. Será interessante analisar que leitura fazem ou permitem ser feitas as fotografias de outros autores anónimos que, na internet, transferem para outros contextos, imagens desta instalação. 


CASANOVA, Tiago (s.d.), Tiago Casanova. Photographic and artistic work  [website]. Disponível online: http://www.tiagocasanova.com/

GREENBLATT, Stephen (2010), “1. Cultural mobility: an introduction”, Stephen Greenblatt et alii, Cultural Mobility: a manifesto, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 1-23.

HUTCHEON, Linda (1989), Uma teoria da paródia. Ensinamentos das formas de arte do século XX, Lisboa: Edições 70.

JOLY, Martine (2003), A imagem e a sua interpretação, Lisboa: Edições 70.

LEFEBVRE, Henri (1991) [1974], The production of space [La production de l’espace], Oxford/Cambridge: Blackwell. 

OLIVEIRA, Susana Silva (2016), “O Centro Histórico do Porto é Património Mundial há 20 anos. Faça-se luz!”, Visão (5 dez.). Disponível online: http://visao.sapo.pt/actualidade/visaose7e/ sair/2016-12-05-O-Centro-Historico-do-Porto-e-Patrimonio-Mundial-ha-20-anos.-Faca-se-luz.

PRATT, Mary Louise (1991), “Arts of the Contact Zone”, Profession, n.º91, New York: MLA, pp. 33-40.